Revista Muito Mais - Capa - A obsessão chamada TOC
A obsessão chamada TOC
Solange Celere
Lavar as mãos repetidas vezes. Tomar muitos banhos por dia. Andar sobre quadriláteros, apenas em um lado da calçada ou sem pisar em linhas divisórias do piso. Abrir e fechar gavetas para ter certeza de que os objetos estão simetricamente alinhados. Comprar somente equipamentos sofisticados. Checar seguidamente se o gás e o ferro de passar estão desligados. Verificar fechadura de portas e janelas continuamente. Todos estes comportamentos, que em doses moderadas representam asseio, perfeccionismo, cautela, superstição ou meras manias, se ritualizados e em quantidade excessiva, revelam os sintomas de uma doença que, apesar de ter as primeiras descrições datadas da Idade Média, ainda desafia médicos e cientistas de várias especialidades: o Transtorno Obsessivo-Compulsivo, conhecido como TOC.
O cotidiano dos portadores de TOC é de sofrimento contínuo. São perseguidos por pensamentos desenfreados e intrusivos, sob os quais não têm controle. Em muitos casos, por conta deles lavam as mãos até sangrar, os banhos duram horas seguidas, o vai-e-vem das gavetas ultrapassa 30 vezes, as compras desnecessárias significam a falência financeira e o ritual de checagem de portas, janelas, bicos de gás e equipamentos eletroeletrônicos se repete por uma noite inteira.
Em todos eles, a pessoa não consegue resistir ao pensamento obsessivo de realizá-los, apesar do ritual representar-lhe angústia e sofrimento. No auge do descontrole e do desespero, a vítima chega a pensar em suicídio.
O TOC não escolhe idade para se manifestar. “Costuma surgir na adolescência. É mais raro em crianças muito pequenas e em pacientes com mais de 60 anos. É vitalício”, explica o psiquiatra Paulo Dalgalarrondo, 44 anos, chefe do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
O auxiliar administrativo E.S., de 45 anos, de Campinas, pensava que era apenas uma pessoa cheia de manias até que os sintomas foram se agravando. “Eu vivo aprisionado”, revela, dispondo-se até a participar de pesquisas científicas que busquem a cura da doença. “O TOC me faz sofrer muito. Não consigo desenvolver minha vida.”, desabafa, com a experiência de quem já experimentou vários sintomas do distúrbio. “No banho, cortava o sabonete em vários pedacinhos. Depois que um deles tocasse meu corpo ou a esponja, não servia mais, estava contaminado. Tento me controlar, mas não saio tranqüilo enquanto não arranco da tomada os fios de todos os equipamentos. Nunca experimento as roupas que compro. Penso que estou sujo, contaminado, que alguém que passou por mim vai morrer. É uma angústia constante”, descreve. E.S. passa por tratamento há mais de 15 anos, entre altos e baixos.
O engenheiro civil P.M., 45 anos, convive com as dificuldades de lidar com os rituais provocados pelo TOC. Sua filha G., de apenas 13 anos, começou a apresentar os primeiros sintomas aos 11. “Ela só andava em certos pontos da casa, pisava em quadradinhos. Abria e fechava suas gavetas. Demorava ao se aprontar para a escola, pois seguia um ritual para amarrar o tênis. Ao dormir, a mãe tinha que lhe dizer algumas frases previamente elaboradas. Usava uma roupa até acabar. O rendimento escolar caiu e os rituais passaram a influenciar a vida da família”, revela.
A angústia da família de G. continuou por idas e vindas a médicos, sem um diagnóstico acertado, apesar das desconfianças dos pais da menina. Há apenas um ano eles encontraram um especialista que diagnosticou o TOC. A adolescente está em tratamento com avanços consideráveis. “O assunto ainda é pouco divulgado e o sistema de saúde brasileiro não tem estrutura para tratar destes casos”, critica o engenheiro, que trabalha em um empresa de Campinas e mora em Piracicaba.
O psiquiatra Acioly Luiz Tavares de Lacerda, 35 anos, de Campinas, é apontado como uma das autoridades nacionais em TOC. É dele um estudo pioneiro no Hemisfério Sul acerca do fluxo sangüíneo cerebral em pacientes com diagnóstico de TOC, cujos resultados foram publicados por órgãos internacionais da comunidade científica.
A pesquisa, com 34 pacientes adultos acompanhados por cinco anos, contribuiu para a compreensão mais aprofundada do que ocorre com o cérebro de um doente de TOC. Com recursos da neuroimagem e testes neuropsicológicos, o pesquisador identificou o aumento da atividade cerebral em alguns pontos, sobretudo o frontal. “Sempre que o cérebro fica superativado nessas regiões, há aumento de fluxo sangüíneo, a pessoa não consegue controlar seus pensamentos nem as atividades decorrentes deles”, explica Lacerda.
Se antes o problema era tido meramente como psicológico, com estudos desta linhagem realizados em vários países, hoje já se sabe que é uma disfunção bioquímica do organismo. Resta saber as razões.
O TOC levou dois empregos da gerente financeira A.E.M., de 36 anos. “Numa ocasião, autorizei a aquisição de celulares e computadores de última geração para todos os executivos da empresa. Mandei trocar toda a frota de automóveis. A empresa não suportou e quebrou. Sofro demais e quero me curar”. A.E.M., que nunca se casou, passou a morar sozinha em Indaiatuba para não ser repelida pela família devido às suas compras de sapatos: vários do mesmo modelo e cor, sempre de grifes. Tem mais de 60 pares sem uso.
Os sintomas do TOC estão mais populares hoje do que há dez anos. Foram retratados no cinema, como no filme Melhor é Impossível, em que Jack Nicholson é atormentado pelas manias decorrentes do distúrbio. Meios de comunicação internacionais, sobretudo os que se dedicam à vida pessoal de celebridades, divulgam e atribuem ao TOC algumas das ‘manias’ do ator Leonardo DiCaprio e do cineasta Woody Allen. DiCaprio tem mania de perseguição e Allen, obsessão por limpeza e remédios, além de pavor por lugares fechados (claustrofobia).
No Brasil, artistas de notoriedade, como o cantor Roberto Carlos e a atriz Luciana Vendramini, assumiram passar por tratamentos para se livrar de sintomas da doença. O rei da jovem-guarda achava que algo de ruim aconteceria se usasse roupas escuras. Cinco anos após ter o mal diagnosticado, não as usa, mas já se controla diante de quem esteja de preto, por exemplo. A atriz chegou a tomar banho por 26 horas seguidas e já está em tratamento há três anos.
A difusão tem contribuído para que as pessoas portadoras do TOC, ou seus familiares, associem os sintomas à doença e, com isso, cheguem ao diagnóstico preciso. Diagnóstico que pode demorar até dez anos para acontecer. “O portador do TOC tem consciência de que seus rituais e pensamentos são absurdos, fora do normal. Por isso tem vergonha e até medo de ser tachado de louco, o que faz com que demore a procurar ajuda médica”, explica Lacerda.
Há distúrbios de ordem severa e branda. Nos dois casos, a orientação dos especialistas é idêntica: procurar um médico o quanto antes. O diagnóstico precoce é significativo na evolução do tratamento, ao passo que o tardio pode agravar os sintomas.
Nicole (nome fictício) tem 23 anos e trabalha do setor de comunicações em Campinas. Lê muito, mas não consegue se concentrar na leitura caso não repita o gesto de esfregar os dedos, num movimento frenético de toques das mãos. “Se leio por quatro horas, fico o tempo todo assim. Disfarço diante de estranhos, mas é difícil controlar”, conta.
“Também preciso saber se o número de palavras de uma frase que leio é ímpar ou par. Esse pensamento me consome e me faz sofrer. Odeio isso, mas não consigo deixar de fazer”, conta a jovem que nunca procurou ajuda médica por considerar que as manias são o resultado de sua ansiedade. “Sei que não é normal, mas não acho que seja uma doença. Nem sei que médico procurar”, admite.
Casos como este são comuns, segundo a psicóloga Maria do Sacramento Tanganelli, 52 anos, especialista no tratamento cognitivo- comportamental do TOC há 20 anos. “Muitos pacientes chegam ao consultório envergonhados. Alguns vêm consumidos pela depressão e ansiedade devido aos pensamentos ou rituais obsessivos, com muita culpa e a auto-imagem bastante negativa”, afirma.
O Ambulatório de Psiquiatria da U n i c a m p , atualmente com 16 profissionais, tem perto de 50 casos de TOC em tratamento multidisciplinar. “A medicina não tem a cura. Apesar dos importantes avanços nos tratamentos, o TOC ainda desafia as neurociências”, lamenta Dalgalarrondo.
Esta briga da ciência contra o TOC tem dimensão mundial. Em todos os continentes há registro de estudos que buscam desvendar a doença. Conhecer e compreender suas particularidades, as áreas do cérebro que ativa e sua reação a determinados medicamentos contribuem para a busca da cura ou, enquanto isso não ocorre, a forma de controle para que o paciente tenha maior qualidade de vida.
As descobertas mais recentes permitem o tratamento com medicamentos que agem sobre a química cerebral. “Os inibidores da recaptação de serotonina – neurotransmissores presentes no TOC – encontrados em um certo grupo de antidepressivos, são os mais eficazes”, explica Lacerda. Antidepressivos como fluvoxamina, paroxetina, sertralina e clomipramina são os que mais ajudam a reduzir os sintomas.
As terapias são importantes aliadas da farmacopéia. Elas ajudam o paciente a resistir às compulsões. A associação de medicamentos e terapia é apontada pelos médicos como o melhor caminho. “A medicação faz a mudança química, a terapia ajuda o paciente a conceituar os pensamentos e a resisti-los”, orienta a psicóloga Maria do Sacramento.
A orientação é atestada pela pesquisa do sueco Tomas Furmark. Por meio de neuroimagens, ele estudou dois grupos de pacientes: um tratado apenas com terapia, outro só com remédios. A conclusão foi de que a terapia altera o funcionamento cerebral tanto quanto a química. Os dois juntos podem representar uma vida mais saudável.
100 milhões de atormentados
O TOC é uma disfunção que atinge cerca de 3% da população mundial. Isso significa que mais de 100 milhões de pessoas no mundo sofrem das obsessões e compulsões características da doença. Só no Brasil, o número pode passar de 5 milhões – estima-se que 30 mil delas estão em Campinas.
Até por suas dimensões, tem sido objeto de intenso estudo da comunidade científica mundial. As pesquisas já permitem maior conhecimento e, por conseqüência, maior controle dos sintomas. “O TOC teve sua etiologia atribuída aos mais variados fatores ao longo da história, da possessão demoníaca ao prejuízo da circulação cerebral, os danos neurais subjacentes e, no século 20, aos conflitos emocionais da infância. Hoje, temos provas de que se trata de uma disfunção bioquímica que atinge milhões de pessoas e cerca de 70% delas sofrem de depressão”, resume o psiquiatra Acioly Tavares de Lacerda. Em São Paulo, uma equipe do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) iniciou um procedimento inédito no Brasil, a partir de uma delicada e longa cirurgia sem cortes, realizada com raios gama. A radiação, em intensidades variáveis, elimina um grupo específico de neurônios envolvidos no TOC. Apenas cinco pacientes, em que a disfunção – severa – não era controlada de nenhuma outra forma, já participaram da experiência.
Nos Estados Unidos, especialistas da Universidade de Brown, em Providence, já realizaram o mesmo tipo de intervenção em 50 pessoas. Os resultados, positivos ou negativos, só devem estar disponíveis daqui cinco anos. (SC)