EXTRA PAUTA
HISTORIAS DE UM REPORTER
CAPITULO I
Jornal Correio Popular 29 de novembro de 1979
CHAMADA DE CAPA
Nosso reporter ve a CCTC por dentro e por fora
Retratar com fidelidade como se desenvolvem as atividades, o regime de semi-escravidao em que vivem os funcionarios - motoristas, cobradores e de outros setores - da CCTC - Companhia Campineira de Transporte Coletivo, eh algo praticamente impossivel de conseguir. Mais notadamnte pelo sistema burocratico da empresa no que tange ao fornecimento de informaçoes. Para tanto foi preciso que nosso reporter Gilberto Gonçalves se candidatassse a cobrador passando por todo processo de testes e treinamentos que na verdade nao significa nada satisfatorio para em seguida ser admitido. Trabalhando como cobrador durante dois dias, mais de 20 horas nosso reporter conta as dificuldades enfrentadas pelos cobradores e motoristas da CCTC, o problema do troco, que a empresa nunca fornece, o esquema do trabalho que força a trasbalhar até 15 por dia, as irregularidaddes dos passes utilizados por pessoas da Prefeitura e que o cobrador tem ordem rigorosa de não pedir a acarteirinha de identificaçao. Nosso reporter conta ainda o entrosamento entre motorista e cobrardor no sentido de dividir a quebrra de caixa q ue denominam 'boia'. Nessa trama toda, o cobrador da CCTC, levado pelas circunstancias, lesa o usuário, porem, o faz em conivencia coma empresa que não soh permite como falita este abuso. (Páginas 24 e 25)
CAPITULO II
Pagina 24
Dos documentos a ficha de emprego, uma aventura
Reporter cobrador da CCTC? Em principiopareceu mesmo inviavel. Primeiramente porque era substimar demais o departamento pessoal da empresa. Os funcionarios perceberiam de imediato a trama. Alem do mais a carteira profissional exigida não poderia ser a do reporter eh evidente. O jeito foi pensar em conseguir toda documentação necessaria para a admissao. A primeira etapa da ideia foi posta entao em andamento. O reporter saiu em busca da documentaçao.
TER DUAS OU TRES CARTEIRAS PROFISSIONIAS E MUITO FACIL
Como era necessário uma nova carteira profissional, era, consequentemente, imprescidivel obte-la. Nao foi tao dificil como parecia. No dia 31 de outubro o reporter rumou para a DRT Campinas, situadada prooxima ao Viaduto Miguel Vicdente Cury. Antes mesmo de chegar ao salao onde três ou quatro funcionarios expedem o documento, passando pela esquina da Rua Dr. Saravaiva foi abordado por alguns elementos. "Vai tirar foto xara? Faço na hora e carteira de saude também". Não deu ouvidos e seguiu colocando-se na fila que sempre antecede a plaquinha sustentada por um suporte branco onde se le: "Faça fila aqui". Como havia apenas umas tres pessoas a sua frente não demorou a ser chamado ao balcao de atendimento..
"Certificcado de reservista?" pediu o funcionario. Depois então perguntou: "E a primeira vez que tira carteira?". Mal respondida a pergunta ele ja preenchia o o espaço reservado aos dados pessoais do interessado. Nome: Gilberto Gonçalves; Local de nascimento: Santos/SP; Data de nascimento: 04/01/1951; Filiacao: Antonio Goncalves e Florinda de Souza Goncalves; Estado civil: solteiro; Ele deixou em branco os espaços Doc. No.; Fls; Liv; Registro Civil; Outros Docs; e depois continuou. Situação militar: Certificado Militar No. 437905; Orgao; 2a. RM - Estado de S. Paulo; Data da emissao: 31/10/79. Depois colocou sua matrÃcula ou outro qualquer; 8346 e assinou.
Enquanto escrevia automaticamente comentou sobre a cidade de origem do reporter: "Quer dizer que voce então eh de Santos? Que terrinha boa hein. Como eh, vai pra la neste feriado (Finados)?" Pegou o rolinho de tinta e passou no dedo do reporter. Ofereceu a ficha de arquivo e a carteira parqa serem autenticadas comn a impressao digital e disse; "Pronto. Pode limpar a mão na estopa que esta naquela mesa. Instantes depois o reporter saia dali com sua carteira profissional No. 89525 - Serie 00013 - SP, emitida pela Secretaria de emprego e Salario e não mais pelo Departamento Nacional de Mao de Obra - Divisão de Identificação e Registro Profissional que emitiu sua anterior No. 38958 - Serie 273 de 08/03/1971.
CAPITULO III
Pagina 24
CARTEIRA DE SAUDE. DE SAUDE?
Foi o tempo em que uma Carteira de Saude podia realmente receber este nome. Hoje ela não passa de uma simples abreugrafia tirada por tecnicos nem sempre capazes e cujos impressos ficam aos montes numa gaveta, já assinados pelo medico responsavel, prontos prqa serem entregues. A maioria dos que se dedicam a este ramo, quase sempre denominado Instituto Bareugrafico, cobra normalmente 100 cruzeiros por uma "Carteira de Saude", mas, curiosiamente, o escritório do despachante "Ged", sitado em frente a garagem da CCTC, que trrabalha em conjunto como departamento pessoal, cobra apenas 50 cruizeiros.
O reporter rodou a cidade em busca de uma carteira tirada na hora. Num dos Institutos, se não fosse a presença de 'caçadores' de fregueses quwe ficam na esquina, o responsável pelo serviço teria fornecido uma abreugrafia de outra pessoa "que não voltou para buscar". Primeiro ele disse que só fazia pelo dobro do preço, depois pensou bem diante de tantos 'caçadores' e remendou: "Olha moço eu não vou poder quebrar seu galho hoje, mesmo tendo possibilidades pois os impressos já estão assinados e eu tenho muitas abreugrafias que não vieram buscar mas acontece que..." Seu olhar disse tudo, 2000 cruzeriros seria muito pouco para dividir com tanta gente. "Mas se voce for no IMA garanto que vc consegue". O reporter foi. Lá poer pouco nao convence a funcionaria quye trabalha sozinha durante todo o dia. A chegada de duas pessoas acabou atrapalhando tudo. Mesmo assim o reporter saiu como documento assinado. Ficou faltando só a abreugrafia. O problema foi resolvido, no entanto, utilizando a carteira já existente na empresa onde trabalha.
CAPITULO IV
Pagina 24
DEPOIS DOS DOCUMENTOS, AS FILAS...
Realmente não foi difÃcil colocar a documen tação em ordem. . A Carteira Profissional em" branco saiu com muita facilidade da DRT-Campinas. A de Saúde custou, pelo menos em dinheiro, um pouco mais: 100 cruzeiros. Todos os outros documentos - Carteira de Identidade, TÃtulo de Eleitor, Certificado de Reservista e o Cartão de Identificação do Contribuinte (CIC) - estavam em ordem a. em poder do repórter. Restava apenas se apresentar na empresa e tentar preencher a ficha de solicitação de emprego, esperando que nenhum funcionário desse pela coisa.
Seguindo a orientação fornecida através de um telefonema por um funcionário da CCTC, o repórter
se apresentou, munido de todos os documentos, na portaria da firma, na Vila Costa e Silva, no dia primeiro de novembro. A camisa esporte, aberta nopeito, de seu costume, foi trocada por uma mais modesta e fechada até o pescoço. A calça "US-TOP", de barra virada, deu lugar a outra, mais antiga, de "Tergal", boca meio larga e bolsos laterais e traseiros com botões. Nos pés, um "Kichute", sem meia. Como quem busca uma colocação para
servir de salvação, com a barba por fazer e procurando falar o mÃnimo possÃvel, chegou até o vigia e perguntou: "Cumé qui eu faço prá fichá como co-
brador?". Livrando o portão da corrente que im
pede a passagem dos veÃculos, o guarda respondeu: "Olha, agora só a uma e meia. Isto se ainda estiverem precisando, pois hoje de manhã uns dez fizeram ficha. Volta aà a uma e meia".
CAPITULO V
NA FILA DOS DESESPERADOS ...
Mesmo tendo chegado antes da hora marcada,
não . conseguiu mais que um 17.0 lugar na fila já
existente próxima da cerca. Não demorou muito
e ela já havia aumentando em mais alguns dez candidatos. O sol forte da tarde impacientava a todos,
e a menor sombra, deixada pelos mourões, era quase
de toda aproveitada.
Muito falador, um mulato baixinho comentava
suas aventuras à cata de emprego: "Malandro - dizia - olha, eu já passei umas
poucas e boas com este negócio de ser motorista de
ônibus. Teve uma firma em São Paulo que logo
no primeiro dia que eu cheguei lá para pedir emprego, já me colocaram do lado de uma mulher que
queria trabalhar como cobradora. Levaram a gente
para um ônibus. SaÃmos com um motorista e fize
mos uma vez o trajeto para aprender. Na segunda
vez já estávamos sozinhos. "Trabalhe quatro dias
junto com aquela cobradora e até "transei" algumas
vezes com ela. Depois destes quatro dias a empresa
mandou os dois embora. Era assim com todo
mundo".
Ele não se cansava de falar e uma roda acabou
sendo formada ao seu redor. "Depois dessa firma
fui trabalhar corno motorista de micro-ônÃbus. Maió
pauleira, meu. Mas o que eu perdi nos quatro dias
na outra empresa eu recuperei nesta aÃ. Roubava
pacas o patrão. O ônibus não tinha borboleta e
quem cobrava era eu mesmo. Fiquei só uma sema
na, mas o que eu malhei valeu por um mês. AÃ
eu me mandei. Agora quero ver se eu entro aqui.
Dizem que não é difÃcil". A falação do mulatinho
acabou fazendo o tempo passar mais depressa. Ó sol já estava bem mais forte e alguns atravessaram
a rua para aproveitar a sombra da árvore.
Atrás do repórter alguém perguntou: "Será
que nóis fichamos hoje? Eu não tô aguentando mais
este sol na minha cabeça". O repórter preferiu
não falar nada. Por volta das três horas da tarde,
o vigia chegou próximo do pessoal e quase gritando
disse: "Olha, pessoal, hoje não vão fichar mais nin
guém. Quem quiser voltar segunda-feira pode, mas
não é nada garantido". Algumas reclamações fize
ram o guarda frisar: "Eu não posso fazer nada. Eu
recebo ordens lá de dentro. Eu só cumpro o que
me mandam fazer. Quem quiser voltar segunda,
pode voltar, pois hoje não tem mais ficha". Desa
nimados, todos deixaram o local, mas muitos ainda
continuaram reclamando.
A FILA, SEMPRE EXTENSA...
Depois de um fim de semana prolongado pe
10 feriado do dia 2 (Finados), a segunda-feira segujnte transformou-se num dia. muito mais que
normalmente, propÃcio à busca de empregos. Não
eram oito horas ainda, faltava bem uns vinte minutos e, no entanto, onze pessoas já estavam na
fila. Desta vez o repórter conseguira uma posição
pouco melhor, mas era quase certo que não conseguiria chegar até a ficha novamente. Existe uma norma que faz entrar sempre os dez primeiros
da fila. Os que sobram, aguardam qualquer pro
blema com um destes dez, voltam no perÃodo da
tarde ou no dia seguinte. Como na vez anterior alguns falavam muito mais que os outros.
Nessa ocasião foi um rapaz, trajes slmples
mas muito asseado. Ele contava as experiência
que tivera como vigia de uma firma no Paraná -
Estado que parece ser o maior fornecedor de mão
-de-obra como cobrador e motorista para a CCT.
"Eu não quero mais saber de ser vigia, nem mes
mo sabendo que eles estão precisando aÃ. O guarda já falou que seu eu quiser fazer ficha para vigia eu entro hoje mesmo, mas eu não quero não. Lá no Paraná elf trabalhei de vigia dois anos e se como é de responsabilidade. Já imaginou se al
guém entra aà e rouba tudo e a gente nem vê? Tá
danado sô! Eu quero ver se pego mesmo de motorista. Vigia num quero nem saber. Eu pedi de
missão na firma lá do Paraná porque um amigo
meu ficou amarrado quase a noite toda e só num
mataram ele por pouco. Quando eu soube num
quis mais saber". Os outros ouviam atentos. De
repente, o vigia da CCTe fala ao pessoal: "Os dez
prÃmeiros podem entrar. Os outros se quisserem
esperar podem, senão podem voltar a tarde. Muita gente insistiu com o guarda ele disse a mesma coisa outra vez: "Eu só recebo ordens. Nao mando
do nada ... "
CAPITULO VI
"ENFIM, A FICHA..."
Foi só depois de vários dias, enfrentando a "fila dos desesperados" e resolvendo chegar lá antes mesmo do sol nascer que o repórter conseguiu
enfim chegar até a ficha. Ele era o .segundo da
fila e novamente só entraram dez, entre eles apenas uma mulher. Logo ao passar pelo portão ela
recebeu o primeiro gracejo: "É, parece que voce
vai dar uma bela cobradora", disse o guarda, completando depois; "Acho até que eu vou ser seu
motorista". Ela nada disse, mas devolveu um sorriso. Caminharam todos até a sala de testes. Uma
pequena divisão do departamento pessoal servida
de 12 cadeiras encostadas à s paredes e uma mesinha ao centro. Sentado à mesas Paulo, o "aplÃcador" de testes.
Grosseiramente e com sotaque de nortista
mandou que todos fossem sentando. Instantes depois ordenou com ar de superioridade: "Todo
mundo com carteira profissional e certificado de
reservista na mão". Para um senhor que lhe apresentou a carteira e o tÃtulo ao invés do certificado
disse: "Cê é burro sô, eu disse certificado de reservista e isto é tÃtulo de eleitor". A um outro
que lhe entregou a êarteÃra cheia de documentos,
quase gritou: "Eu falei só a carteira e o certifica
do, não este montão de papel. Tira isto tudo daÃ". Entregou a todos a ficha de testes. Uma pequena folha de papel com o timbre da-CCTC, onde deveriam ser colocados alguns dados pessoais e realizadas as três contas que compõem o teste: uma
de somar com três parcelas, uma de subtrair e
uma de multiplicar.
A dificuldade de muitos era visÃvel em realizar as operações e um fato curioso pôde ser observado. Um senhor, sentado ao lado do réporter,
escrevia totalmente fora das linhas e, ainda assim,
antes de escrever cada palavra, levava a ficha bem
próxÃmà dos olhos. O outro sentado ao lado dele,
percebendo o drama, perguntou:
"O senhor não usa óculos?". "Eu preciso usar
mas não tenho dinheiro para comprar" respondeu ele.
O que perguntara levou a mão ao rosto, tirou o ócu
los que usava e estendeu ao companheiro. Este, ao
colocá-Ia, sorriu e exclamou entusiasmado: "Puxa, como melhorou" . Eles ficaram até o fim do teste trocando o óculos um com o outro.
CAPITULO VII
DEPOIS DAS CONTAS, OUTRA FICHA ..
TermÃnadas ~ três operações, a folha era entregue eo rapaz que ficava sentado ao centro da sala,
sempre desviando seu olhar para à futura cobradora. Houve até um momento em que ele lhe perguntou: "Qualquer dificuldades pode me perguntar viu?
Você é casadal". A outra ficha era propriamente a
de solicitação de emprego. Dados pessoais completos, eartÃnha pedindo emprego, números de documentos, nomes de pessoas conhecidas em Campinas,
etc. O repórter entregou esta ficha com alguns espaços em branco. O rapaz exigiu que ele escrevesse "sim" e "não" nestes espaços.
Ao final, recebeu a ficha, olhou para 'o repórter
e disse: "Você precisa cortar o cabelo. Vai cortar
aqui ou na cidade?", "Na cidade", foi: a resposta, "Você sabe quaÃs são os documentos que precisa tirar xerox?" Depois da negativa disse: "Então passe ali no despachante em frente ao ponto de ônibus que
ele lhe diz. Traga tudo amanhã. Venha com o cabe
lo cortado".
Nada mais restava fazer senão ir ao despachante, instalado na sala de visita de uma casa ainda em construção. Pendurada no portão uma placa: "Escritório Gedê _ Guias para identidades, atestados
e outros.
Lá, o rapaz que atende foi dizendo logo: "É do
cumento para a CCTC?" Pegou um carimbo e o estampou num pequeno pedaço de papel. Todos os documentos que precisavam de xerox e os que ainda
deveriam ser feitos estavam ali relacionados. "As
xerox ficam em 30 cruzeiros" (apenas 4 documentos)
o atestado de antecedentes nós tiramos na hora, fica
em 100 cruzeiros, a carteira de saúde também fica
em 50 cruzeiros. Faço tudo por 180 cruzeiros". Como a carteira de sà úde o repórter já possuÃa, pediu
só o atestado de antecedentes. Este não é feito na
hora coisa nenhuma ... Um recado é passado ao DP
da CCTC dizendo que "o. atestado do sr. Gilberto
Gonçalves está sendo rovidenciado. Quando estiver
pronto envio ao DP". Uma assinatura ilegÃvel "válida" o documento. Estava agora tudo pronto para o
devido registro. Antes porém o repórter passou mais
uma vez pelas mãos do "nordestino" Paulo, para verificar Sé os documentos estavam mesmo em ordem e
se o cabelo havia sido de fato cortado. "Tudo bem,
pode ir no balcão para registrar", disse ele.
CAPITULO VIII
"ARBITRARIEDADE FACILITADA E PERMITIDA PELA CCTC..."
O cobrador da CCTC, leva:lo pelas circunstancias, lesa o usuario, porem, o faz em conivencia com a ernpresa que nao
so permite, como facilita este abuso. As condiçoes de trabalho sao precáarias .. Nao ha hora para almoço e se o cobrador não quiser provocar atrasos na linha em que esta trabalhando, ele tera que ficar as dez, doze ou quinze horas sem ir a
um "WC". Nada disto porem i mporta a empresa, afinal, dezenas de candidatos se apresentam diariamente para ocupar o cargo de cobrador.
A rotatividade desta mao-de obra  para esta atividade chega a ser tao grande que a empresa foi forçada a montar esquema especial de funcionamento para o seu departamento pessoal. Num salao enorme, mais de seis funcionarios atendem no balcao os que estao sendo admitidos - oito a dez por dia -"- bem como os que estão sendo demitidos – quatro a oito por dia, segundo informações de um faxineiro. Os que são admitidos' quase sempre passampor xacotas ou são, de pronto, apelidados. A espera pelo registro chega a ser angustiante, mas
a necessidade faz com que a maioria dos que estao na sala pareça bastante paciente. A bandeja, com um enorme bule de cafe e carregada pelo faxineiro que vestiu um avental branco e passa pelo saguo sem dar importância aos que ali permanecem quase como que dizendo: "O cafe só para os funcionários". Â
CAPITULO IX
"ADOCUMENTAÇÃO E REGISTO É ASSINADA EM BRANCO..."
Depois de passar pela. sala
.de estes e comprcvar -que· a do
cumentação exigida está em ordem, que o cabelo foi devidamente cortado e abarba rasoada , os candidados se apresentam no balcçao do depaartamento pessoal para o ergistro profissional. Um funcionari faciliauase mandando, que o
interessado espere sentado. As
poltronas da sala são como ban
cos de ônibus e os cinzeiros,
cheios de pontas de cigarros, algumas ainda acesas, ficam entre
um estofado e outro. Entregue a documentacão e
durante a espera, a alternativa é
puxar papo com um dos diversos
funcionários que sempre estão
também na mesma sala - a
maioria deles aguardando vez de
acertar as contas - são emissionários. \ Numa das conversas
com um cobrador, foi possÃvel foi possÃvem ficar sabendo que os dois policiais
militares que trabalham dentro
da CCTC, entre outras funções,
têm a de amendrontar os demitdos. Quando o funcionpario entra ali ele cita, quase mandando, que o
eressado espere sentado. As
ltronas da sala são como ban-os de ônibus e os cinzeiros,
heios de pontas de cigarros, al
mas ainda acesas, ficam entre
m estofado e outro. Entregue a documentação e
urante a espera, a alternativa é
uxar papo com um dos diversos
uncionários que sempre estão
também na mesma sala - a ioria deles aguardando vez de
acertar as contas - são demis
sÃonárÃos. \ Numa das conversas
com um cobrador, foi possÃvel ficar sabendo que os dois policiais
militares que trabalham dentro
da CCTC, entre outras funções,
têm a de amendrontar os demitidos.
"Quamdo o funcionário vai
ser mandado embora, ele entra
naquela salinha alà - apontou
para a porta de uma sala sÃtuada a esquerda de quem entra no
departamento pessoal - para o
acerto de contas. Os dois polÃciais
entram juntos e ficam do lado do
funcionário. Eles não dizem nada, mas só o medo que o cara fica ele assina os todos os papeis na mesma hora .
O Dep quando ele vai ver, foi
mandado embora sem direito a
nada", contou o cobrador. Uma outra passagem tam
bém ouvida na sala de espera do
departamento pessoal; diz respeito a um cobrador que, ao ser
mandado embora, exigiu o que
tinha direito, como não quiseram dar, ele deu três tiros num
funcionário da administra cão.
"Eu não vi, mas fiquei sabendo
- conta um senhor que tem no
peito uma plaqueta onde se lê"garagem" - dizem que o cara
não quis saber de muita conversa. Quando- falaram para ele que iam pagar nada e mandaram
ele embora, ele tirou um revólver da cinta e mandou bala no
peito do funcionário". O faxÃnei
ro passa por ali novamente já sem o avental branco e vai lim
par os vidros. De repente um dos candidatos é chamado ao balcão. Os pri
meiros papéis apresentados para
assinar, são cartões de computa
dores. Antes o funcionário coloca
à caneta uns valores no espaço
reservado para descontos. Num
cartão ele escreve 30,00, no outro 50
,00, no outro 135,00 e no último
225,00. Não é difÃcil descobrir
que, mesmo com lei obri
a firma a fornecer gratuÃ
uniformes para seus funciionários quando ela exige "USO, a CCTC desconta em
estes valores. Os 30, cruzeiros
correspondem a gravata, os 55 cruzeiros da camisa, os 135 Ã
calça e os 225 ao par de sapatos"Passo Doble" que só é entregue" ao novo funcionário depois de
trinta dias do trabalho.
Entregue a documentacão e
durante a espera, a alternativa é
puxar papo com um dos diversos
funcionários que sempre estão
também na mesma sala - a
maioria deles aguardando vez de
acertar as contas - são demissionários. \ Numa das conversas
com um cobrador, foi possÃvel ficarr sabendo que os dois policiais
militares que trabalham dentro
da CCTC, entre outras funções,
têm a de amendrontar os demititidos.
CAPITULO X
INSTRUÇÃO: 40 MINUTOS
PARA PREPARAR UM COBRADOR
Alguns dos candidatos ainda
chegam a comentar se o outro leu
ou não o que estava escrito no
contrato. Isso é praticamente impossÃvel, pois o funcionário passa
rapidamente as folhas para a assinatura e depois para a impressão digital tirada com tinta de carimbo. Além do que as folhas estão todas em branco. Alà mesmo
o novo funcionário recebe seu número de matrÃcula que "deverá
ser usado sempre que assinar
qualquer papel dentro da firma",
Nosso repórter recebeu o núme
r..9 25.583.
Feito o registro, o candidato
recebe, uma autorização para instrução. Esta é feita normalmente em dois perÃodos. Quem perde a de 13:30 horas pode fazer à s
17 horas. Antes porém, o recebimento do uniforme. O almoxarife olha para o novo funcionário
mede "a olhos" sua cintura e seu
colarinho, para depois entregar a
calça, camisa e gravata. Os candidatos a motoristas são dispenados para retornarem no dia seguinte.. Os cobradore ficam para instrução. " Ela é fe ita numa pequena sala de
aula e não dura mais que 40 minutos. Ali o cobrador fica sabendo tudo que é obrigado fazer. Nada porém de seus direitos, regalias ou vantagens.
Os instrutores são os despachantes, uma função dentro da
empresa, acima do fiscal. Hermegil é um deles e ministrou
a instrução ao repórter do Correio
Popular. Sua maior preocupa
ção foi mostrar aos cinco operações os passes normalmente utilizados nos ' ônibus, ressaltando
sempre que os passes da prefeitura "têm passagem livre e vocês
não devem nunca pedir ÃdentÃfÃcação à pessoa. Se vocês pedirem
vão fiear em situação complicada.
Quase ninguém usa este passe é
da prefeitura e dá um galho danado pedir a identificação. Não
peçam nunca" .
. O despachante diz tudo que o
cobrador tem a fazer.' "Conferir
o inicial da borboleta, ver se tem
vassoura debaixo do banco, verificar vidros e bancos, ajudar passageiros idosos ou com crianças,
ser cordial e tratar bem a todos.
Ajudar sempre o motorista durante as manobras, coletar testemunhas (de três a cinco) em caso de
qualquer acidente - (se vocês não
fizerem isto vão arrumar encrenca) - não deixar ninguém viajar
com ferramentas de ponta. nem
bebados, tirar o eneerrante .em
cada fim de viagem, não beber
álcool em bar com o uniforme;
exigir identidade para todas as
pessoas que apresentarem passes
(mas nunca para os que derem
passes da prefeitura), não descer
do ônibus em ponto final à noite
e, com relação ao troco, nunca
deixar de fornecer troco ao passageiro se vocês tiverem".
O Artigo 16 do Contrato de
Concessão dos Serviços de Transporte Coletivo por Auto-ônibus
firmado entre CCTC e prefeitura
diz o seguinte: "Os cobradores deverão ter permanentemente, troco
suficiente para' atender aos pa
gamentos com cédulas de até Cr$
50,00" e o Parágrafo Unico, completa: "A empresa fará afixar em
seus veÃculos avisos referentes a
este Artigo". Quase nenhum ônibus possui o aviso. Sobre o troco, os instrutores dizem aos no-
vos cobradores: "A empresa não
fornece troco. Vocês vão sair daqui com a caixinha vazia e têm
que se virar" . Depois destas
orientações os cobradores estão
prontos para sairem trabalhando.
Mesmo durante o rigoroso inverno que faz em Campinas, a em
presa não fornece agasalhos e exige do funcionário que use blusa
aberta na frente, azul - marinho
ou preta. No primeiro mês, ela
não entrega o sapato ao funcionário mas exige, sapato de couro - "não pode ser tênis ou outro tipo
destes" - preto e tem que ser
usado com meia. Ela não dá cÃnto , mas obriga seu uso, devendo
ser de couro e preto. Não exis
te uniforme especial para as cobradoras. Elas usam o mesmo que
os homens, inclusive a gravata e
a calça.
CAPITULO XI
MUITO FUTEBOL E POUCA MOEDA
O dia do cobrador começa quando muita gente
ainda nem foi para a cama. No caso dos que moram
na periferia _ quase todos _ pois o que ganham mal
dá para comer: Cr$ 14,56 por hora que, calculados
sobre 240 horas mensais perfazem um ordenado de
Cr$ 3.544,40 _ o dia começa mesmo às 2H15M quando o "Navio Negreiro" percorre os bairros, servindo
de condução que leva o pessoal até a garagem na
Costa e Silva.
O regime de trabalhá é tão escravizante que eles
mesmo apelidaram o ônibus que os conduz ao trabalho de "Navio Negreiro". Comenta-se, no entanto,
que a empresa vem conseguindo evitar esta analogia,
fazendo com que o ônibus seja chamado apenas de"Negreiro", a fim de desvirtuar a idéia central. Estes
ônibus chegam na garagem por volta das 4H30M. As
conversas são quase sempre as mesmas dentro deles'
O futebol do dia anterior e a esperança de pegar uma
linha que "dê muita gente e pingue pouca moeda de
50 centavos". Muitos vêm dormindo, sem esquecer,
entretanto que a marmita está sobre as pernas. Nela
vem a comida que servirá como almoço, depois de
mais de dez horas de trabalho.
MaIos ônibus chegam na garagem o pessoal já:
está descendo. Correndo, alguns buscam o banheiro
mal cheiroso e sem vasos sanitários. Outros chegam
ainda amarrando os sapatos, abotoando camisa e calça e colocando a gravata. Uns poucos mais estabanados deixam cair pacotes, inclusive a marmita, que
por vezes se abre, levando a perder o almoço do dia.
Grande parte dos motoristas chega com o protetor de
banco _ forro feito com pequenos pedaços de pano
multicoloridos sobre a cabeca, protegendo-se do
frio. A aglomeração, tanto na sala de cobradores
como na de motoristas, chega a assustar. O cheiro
de homem impregna o ar. Uns gritam. Outros riem,
empurram, dão cotoveladas e falam palavrões. Começa a chamada e o relatório passa de mão em mão
até chegar a quem se destina. Dali para o pátio, a
procura do carro identificado através do número existente no relatório.•
 .
FISCAIS E MOTORISTAS ENTRANDO NO RATEIO
No relatório do primeiro' dia de trabalho do re
pórter o número do carro era 5511. O motorista, ArÃstides David, matrÃcula 25.327 e 45 dias de emprego.
A hora de pegada, 4H30M e a de inÃcio, 5 horas no
Jardim Santa Lúcia. As viagens foram extras. O ónibus vai vazio para o bairro e volta lotado para o centro. Na borboleta o número inicial: 99928; depois
las três viagens, o final: 100101. O total em dinheiro
deu Cr$ 571,50 e mesmo procurando dar troco a to
das as 173 pessoas, ainda sobraram 15 cruzeiros. A.o
final das três viagens, o motorista procurou saber
com o "cobrador" se havia dado "bom". Como viu
que o "cobrador" não entendia (se fez de desententido) desistiu e não forçou.
Foi fácil saber, depois, que muitos motoristas
exigem que o cobrador divida a "bóia" com ele.
Assim também, contam alguns cobradores, que determinados fiscais têm a mania de tomar o dinheiro
que sobra ao cobrador izendo que é para a "caixinha de fim de ano". Nada disso 'Chegou a ser apura
do com veracidade •. Nosso reporter talvez pelo tempo que passou e mpregado não passou por esta trama. Na recebedoria da garagem a caixa mal contou o dinheiro, principalmnte o pacote com 10 notas de um cruzeiro. Além disso sobe as moedas de 50 centavos que passavam da wuantia do relatório ela disse: "Eu não poso fiar com um tostão aqui senão d´ao maior falho pra mim"
Muitos cobradores são de longe e grande parte
vem do Paraná. Ismael é um deles. Estava "radiane de alegria pois havia recebido carta da esposa que ficou na casa do pai. Ela dizia, na carta que
leu para os colegas: "Amor, fiquei muito contente em saber que você já está trabalhando de cobrador. Sonhei que você havia arrumado um bom emprego e parece que Deus ajudou.· Eu sei que aà tem muita mulher bonita, mas não esquece que aqui tem uma
feia que te ama muito. "Não vejo a hora de ir para junto de você. Já arrumou
a nossa casa?" . Este era o motivo de alegria. Ismael: um. motorista, de mudança, lhe oferecera
casa onde morava por um aluguel de 800 cruzeiros
deixando-lhe inclusive um mês pago adiantado
alguns pertences que não mais seriam utilizados por ele.
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