Correio Popular - Caderno C - Pág. 10 - O beabá do samba com Nei Lopes
O escritor, compositor e sambista Nei Lopes está com livro novo na praça. Prá começo de conversa não se trata de mais um livro especulativo sobre o samba, mas de um pequeno e sucinto roteiro sentimental para se compreender o gênero matriz da música popular brasileira.
Sambeabá- o samba que não se aprende na escola (Ed.Folha Seca/Casa da Palavra, 188 pág., R$ 28), que o autor estará lançando terça-feira à noite, no Tonico’s Boteco, é um livro que serve tanto às autoridades no assunto quanto às pobres almas que nunca ouviram um samba na vida.
Não cobrem de Nei Lopes isenção nos comentários. Como ele próprio explica, no inicio do livro, Sambeabá “não é tese, não é ensaio, não é história, e, sim, o registro apaixonado de uma vivência de quase meio século”.
Você sabe, por acaso, a diferença entre samba de partido-alto, chula-raiada e samba-duro? Sabe por quê Paulo da Portela andava sempre elegante? E que existiu outro grande sambista chamado Noel Rosa? Quer entender as gírias que circulavam entre os sambistas? Essa é a parte mais divertida. Um samba ruim era chamado de “boi com abóbora”; já “cardoso gouveia” se referia à uma cachaça de má qualidade. E “zé maria”, quem diria, era a morte.
As expressões ainda são usadas em alguns redutos, mas já estão em vias de extinção. Estas e outras histórias são contadas com o entusiasmo e o bom humor de um papo de botequim. Sem deixar perder a seriedade do pesquisador engajado que sempre foi Nei Lopes. São histórias curtas, daquelas que duram o tempo exato de um chope. E dissecam o gênero desde suas raízes africanas até os dias atuais — sem, contudo, considerar o pagode pasteurizado surgido nos anos 90.
Correio Popular - Apesar de tudo, o samba resiste ao desaparecimento. A que você atribui essa capacidade de permanência?
Eu entendo que a permanência do samba, em todos estes anos, se deve, primeiro, à força de sua ancestralidade. Na minha opinião, não existe em outras culturas essa relação da música com o indivíduo e a sociedade como existe na África Negra. Um outro fator que determinou a permanência do samba é o fato de ele ter, através de sua força ancestral, marcado a identidade brasileira. E, apesar de todo o esforço pasteurizador e desnacionalizante feito pelo marketing dos conglomerados do disco e do entretenimento, o samba permanece vivo, cheio de vitalidade em suas diversas formas, porque se tornou um traço identificador de brasilidade. E não tem essa de “agonizar”, não. Que me desculpe o Nelson Sargento, meu superior hierárquico, já que eu sou soldado raso.
O samba já não é caso de policia, mas o preconceito contra ele ainda parece existir como você defende. De que forma isto pode ser percebido?
O preconceito contra o samba se percebe na associação que se procura fazer dele com a pobreza, já que, no Brasil, até prova em contrário, negro é sinônimo de pobre. E ai você vai vê-lo sempre associado à mesa de boteco, ao pé-de-chinelo, à ingenuidade, à alegria babaca. Paulo da Portela, nos anos 30/40, já sacava isso e reagia, sempre bem vestido e articulado, bem falante, participando até de comícios do PCB. Hoje qualquer roqueirozinho que escreve umas coisinhas é visto como intelectual. E sambistas que pensam e expressam bem seu pensamento, como Martinho da Vila, Elton Medeiros, Paulinho da Viola, Luiz Carlos da Vila e tanto outros, são apenas “sambistas”, nunca são vistos como pensadores, como formadores de opinião”.
Alguns críticos defendem a idéia de que não existe uma música brasileira pura — e que mesmo o samba nasceu a partir de uma combinação de influências. Na sua opinião, existe a “música brasileira”? Ela é identificável?
É claro que o samba nasceu de uma combinação de influências. Mas se construiu sobre uma base africana, como toda a Cultura brasileira. Foi sobre esse alicerce que ele se consolidou como a maior expressão da música brasileira. Agora, você lançar como sambista um Alexandre Pires — que aliás é um grande cantor—, e aos pouquinhos fazer ele virar um Luther Vandross ou um primo da Mariah Carey ai é sacanagem das tais “majors”. Existe urna música brasileira, sim, que pode não ser pura mas é brasileira. As “impurezas” que ela por acaso tenha, são fruto de um processo natural e não mercadológico.
O samba, bem ou mal, é a base para quase todo o tipo de música que se faz no Brasil. Porquê então ele não tem o mesmo destaque do que seus derivados, na mídia?
Não tem porque ele é perigoso. Ele é o grande empecilho à estratégia das tais “majors” de gravarem a musica do mundo todo num playback só, falando apenas de amor e mudando apenas os idiomas. Só que aí, aparece um Zeca Pagodinho falando de barraco, tendinha, macumba, quizumba, e vendendo milhões e elas têm que aturar.
Existe uma retomada do interesse pelo samba no eixo Rio-SP, sobretudo por parte do público jovem de classe média. A que você atribui esse episódio?
A vulgarização cansa, não é? Principalmente quando imposta pela grande mídia. Vira uma forma de opressão, de tortura. E ai o público jovem, em geral universitário, oprimido e torturado pelo Faustão, pelo Gugu etc, veio em busca de liberdade de escolha e optou pelo conteúdo. Exatamente como nos anos 60, no contexto da ditadura militar Foi ali que surgiram, graças aos pais e avós desses jovens de hoje, Cartola, Nelson Cavaquinho, Zê Kéti, Elton, Clementina, Paulinho da Viola, Nelson Sargento, Jairdo Cavaquinho...O DNA do hoje chamado “samba de raiz” vem do (bar) Zicartola, da resistência musical à ditadura de 64.