Revista Metrólope - págs. 22 a 26 - Um vôo na História
Eram dez horas da manhã do dia 18 de setembro de 1903 quando o inventor Santos Dumont chegou a Campinas, trazido por um trem da Ferrovia Paulista. A Prefeitura havia decretado feriado municipal e uma multidão o esperava dentro e fora da estação da Fepasa. Em uma das janelas do trem destacava-se o inconfundível chapéu de abas largas e caídas que fazia de Santos Dumont um tipo único. O inventor tinha 30 anos e, mesmo antes de realizar o primeiro vôo da história da humanidade, já era uma celebridade mundial. Para Juraci Beretta, coordenadora do Museu Carlos Gomes do Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA), a visita de Santos Dumont foi o acontecimento mais importante em Campinas no seu período de maior efervescência intelectual.
O jornal Commercio de Campinas, naquele dia, bateu recorde de vendas e circulou de mão em mão, na estação lotada. O editorial na primeira página começava assim:
“Antes delle o balão elevava-se aos ares como uma flor, mantida pelo cabo que era como a haste que a prendia a terra. Captivo, vivia, a bem dizer, a vida placentária, movendo-se mollemente no espaço como o feto que se prende à mater pelo cordão umbilical. Ele cortou ousadamente a haste e a flor fez-se astro, deixou de oscilar à brisa e começou a gravitar triumphante. A Liberdade nascera”.
Cercado por autoridades e pela banda da União Operária, o inventor desceu a Rua 13 de Maio, seguiu pela Conceição e dobrou a Barão de Jaguara, rumo ao marco zero da cidade, onde colocaria a pedra fundamental do monumento-túmulo ao maestro Carlos Gomes. No caminho, parou para almoçar no casarão do Barão de Ataliba Nogueira, onde hoje está o Centro Cultural Evolução. Recebeu homenagens do Clube Campineiro e ouviu tocar a orquestra ítalo-brasileira. No final da tarde, quando Santos Dumont chegou ao Centro de Ciências Letras e Artes (CCLA) para falar às autoridades, aos intelectuais e jovens campineiros, em frente à sede, o proprietário do Bazar Chinês fez subir um enorme balão.
“Quando o inventor chega a cidade, Campinas ganha visibilidade e reconhecimento dos intelectuais de todo o País”, observa Juraci Beretta. O CCLA, reduto notório de intelectuais no início do século passado, foi um dos responsáveis pela vinda do inventor, que teria aceito convite direto de um de seus diretores, o professor César Bierrenbach.
Como recordação daquele dia, o museu do CCLA guarda até hoje a pá de prata com a qual Santos Dumont colocou a pedra-fundamental no túmulo de Carlos Gomes. “É um objeto de valor simbólico muito grande”, afirma Juraci. A ligação do inventor com Campinas vem desde a infância, quando estudou no colégio Culto à Ciência, de 1883 a 1885. “Não há registros fotográficos da época, mas Dumont chega a citar a importante formação que recebeu no colégio campineiro, em um de seus livros escritos na França”, diz a coordenadora do museu.
CEM ANOS DEPOIS, A VISITA REFEITA
Exatamente um século depois da visita histórica, a Prefeitura de Campinas celebra a data com a reconstituição do trajeto percorrido por Santos Dumont. O evento, idealizado por Glória Cunha, diretora da Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas, será realizado na próxima quinta-feira, das 17h30 às 21h30, e conta com teatro e passeio histórico. No meio do público, atores estarão vestidos com roupas da época. Uma programação musical que culmina com a apresentação da Sinfônica está prevista.
Henri Lalli, ator e autor da peça de teatro que conta a saga do inventor brasileiro, fará o papel de Santos Dumont. Segundo ele, a paixão pela vida e pela obra do inventor começou na infância. Nesse período, ele começou a se interessar por aviões e a pesquisar a vida de seus criadores. “Santos Dumont é, talvez, o brasileiro mais importante de todos os tempos. Mas, infelizmente, sua história é menos divulgada do que deveria. A peça de teatro cumpre a função de mostrá-lo como um homem genial, solidário e obsessivo pelas alturas”, diz.
Como explica Henri, ao final da encenação, Santos Dumont, surpreendido por uma banda que toca músicas de Carlos Comes, passa a relembrar sua visita a cidade, em 1903. No segundo momento, a platéia segue para o saguão da estação movida pela música regida por Sant’Anna Gomes, que comenta com César Bierrenbach fatos da vida e da obra do irmão Carlos Comes. Santos Dumont volta à terceira cena chegando a Campinas de trem, saudado pela população.
O roteiro segue com os personagens descendo a Rua 13 de Maio e pontos centrais. No Centro Cultural Evolução (então Palacete do Barão de Ataliba) haverá um recital lírico. César Bierrenbach relata o episódio conclamando a população para seguir o cortejo até o local definido para o monumento-túmulo: na Praça Bento Quirino é lançada a pedra fundamental.
“Refazer, depois de um século, o trajeto de Santos Dumont em Campinas é uma honra e um privilégio”, afirma Henri. Segundo o ator, diante das inúmeras tentativas de voar feitas pelo homem, Santos Dumont sonhava em se elevar do solo contando somente com o seu avião, ou seja, sem recorrer a sistemas como a catapulta. “Muitos, como os irmãos Wright, conseguiram, no máximo, planar no ar, com a ajuda do vento. Porém ninguém havia conseguido antes, com o auxílio da engenharia mecânica, levantar vôo”, afirma.
MAIS PESADO QUE O AR
A invenção, que conferiu fama a Santos Dumont em todo o mundo e foi batizada de 14-Bis, tinha 12 metros de envergadura e 10 de comprimento. A superfície total era de 80 m2. O biplano tinha as asas em forma de diedro. Todo o conjunto pesava, com o aviador, cerca de 210 kg. As superfícies eram de seda japonesa, com armações de bambu e junturas de alumínio. Os cabos dos comandos dos lemes eram de aço de primeira qualidade, do tipo usado por relojoeiros nos grandes relógios das igrejas.
Com esse avião, Santos Dumont conseguiu realizar em 23 de outubro de 1906, o primeiro vôo mecânico da história da humanidade, devidamente homologado, alcançando a distância de 60 metros, a uma altura que variava entre 2 e 3 metros. “Santos Dumont havia resolvido o problema do vôo num aparelho mais pesado que o ar: o 14-Bis realizou uma corrida, desprendeu-se do solo, voou em linha reta e pousou em seguida, sem qualquer avaria. Nunca alguém havia conseguido este feito. Neste momento, ele muda a história do homem sobre a Terra”, observa o ator Henri Lalli.
PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE
Alberto Santos Dumont nasceu em 20 de julho de 1873, na cidade mineira de Palmira (hoje Santos Dumont). Dos grandes inventores mundiais, é o mais jovem a realizar seus feitos. Dentre seus inventos estão o relógio de pulso, a regulagem quente-frio do chuveiro e a porta de correr. O mais importante deles, porém, tornou-o uma celebridade mundial: o avião. E junto com o avião, o hangar, o ultraleve, o aeroporto, a palavra airport (em inglês) e o uso do alumínio, da roda e do motor a explosão em aeronaves, entre outros.
Antes de ganhar o título de “Pai da Aviação”, Santos Dumont estudou nos melhores colégios do Brasil. O primeiro deles foi o campineiro Culto à Ciência, em 1879. Seu pai, um rico fazendeiro de café, proporcionou-lhe estudo também em São Paulo, Ouro Preto, Rio de Janeiro e Paris. Na França, empregou-se como piloto de balões e não tardou a construir um para si, batizado de Brasil, em um projeto que obteve a incredulidade de todos. Aí começou sua fama, pois era o menor balão já construído no mundo.
Dizia Santos Dumont que “a direção dos balões e o vôo mecânico eram problemas insolúveis”. Porém, ele mesmo resolveu os dois dilemas construindo (e experimentando) o primeiro balão dirigível (o N0 5) e, poucos anos depois, o primeiro avião capaz de levantar vôo por seus próprios meios (o 14-Bis). Vivia a arriscar a vida e sofreu inúmeros acidentes numa época em que muitos outros já haviam morrido em experimentos aéreos, como o alemão Otto Lilienthal e o brasileiro Augusto Severo.
Talvez o mais impressionante na história é que Santos Dumont não patenteava qualquer um de seus inventos, pois acreditava que eram propriedade da humanidade. Em 1926, começou a lhe incomodar o uso do avião como arma de guerra. Fez um apelo em carta ao Embaixador do Brasil na Sociedade das Nações (organização precursora da ONU), clamando pela interdição das máquinas aéreas como armas. O inventor brasileiro entrou em depressão profunda quando alguns de seus grandes amigos morreram num acidente de avião, em 1931. O estado depressivo se agravou ainda mais após o início da revolução de 1932. Vendo aviões brasileiros usados contra o povo, Santos Dumont optou pelo suicídio, enforcando-se no quarto de um hotel, em Guarujá (SP), em 23 de julho deste mesmo ano, aos 60 anos de idade.
POLÊMICA INTERMINÁVEL
Ainda hoje se discute quem foi o verdadeiro “Pai da Aviação”. Na França, por exemplo, citam Clement Ader que, em 1890, tentou voar em um aparelho com forma de morcego, embora tenha se espatifado sem sair do chão. No entanto a maior polêmica envolve Santos Dumont e os irmãos norte-americanos Wilbur e Orville Wright.
O primeiro vôo dos irmãos Wright ocorreu no dia 17 de dezembro de 1903, em Kitty Hawk, Estados Unidos. Mas diferentemente de Santos Dumont, os Wright não realizaram o que se chama de vôo autônomo, ou seja, ascensão da aeronave por meios próprios. O aparelho dos americanos era catapultado contra o vento e só depois conseguia se sustentar no ar.
Os Wright não foram a Paris, preferiram esconder seu feito, aparentemente para não perder a patente. Só apareceram em 1908, com uma aeronave mais avançada que qualquer outra existente, reivindicando o título de pioneiros da aviação mundial. Mas até 1910, todos os aparelhos dos Wright necessitavam de uma catapulta ou vento intenso em urna pista em declive, enquanto o 14-BIS de Dumont voou em 1906.
“Santos Dumont, por suas breves, mas explosivas demonstrações, introduziu a aviação mecânica na Europa e a comprovou diante de especialistas e do público. Este é seu mérito real”, declarou o historiador francês Charles Dollfus. Segundo o pesquisador brasileiro Henrique Lins, há ainda outra explicação: “Durante a 2ª Guerra Mundial, os EUA necessitavam mobilizar a opinião pública para mostrar que tinham poder para competir com a Luftwaffe, a poderosa força aérea alemã. Então foram desencalhar a façanha dos irmãos Wright e os transformaram em heróis nacionais. Santos Dumont fez pela primeira vez o vôo integral: saiu do chão por seus próprios meios, deslizou no ar de forma controlada e pousou. Isto não foi feito pelos irmãos Wright.