Correio Popular - Caderno C - pág. C1 - Entrevista com artistas negros em comemoração ao Dia da Consciência Negra
Antes de negros, brancos, mulheres, homens, pobres ou ricos, os nomes que aparecem nesta reportagem são de pessoas que contribuem para o engrandecimento da cultura e identidade brasileiras. Próximo da data do Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro — instituído como feriado municipal pelo prefeito Antônio da Costa Santos (PT, assassinado em l0 de setembro de 2001) — o tom não é de lamento, mas de orgulho.
O Caderno C conversou com oito representantes das artes em Campinas a fim de refletir a situação do negro hoje e conhecer melhor aqueles que fazem do seu trabalho uma ferramenta para quebrar preconceitos.
O que a reportagem encontrou foi artistas com posturas bastante positivas, como a bailarina e cantora Inaicyra Falcão dos Santos, que diz que não adianta esperar a aceitação do branco: “Somos nós que temos de nos aceitar”, desafia. A cantora de samba Aureluce dos Santos declarou que o negro não deve se comportar como vítima o tempo todo. “Senão, vou achar que qualquer olhar torto para o meu lado é preconceito”.
Essa mudança de comportamento por parte de negros e brancos é sentido, principalmente, no cinema nacional - em filmes como Madame Satã, de Karin Aïnouz; O Homem que Copiava, de Jorge Furtado; Uma Onda no Ar, de Helvécio Ratton; e o polêmico Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e Kátia Lund e que resultou na ótima série televisiva Cidade dos Homens, que teve o último episódio exibido pela Globo no dia 11.
Diante da maior presença do negro no cinema nacional, o próximo passo seria mesmo a telenovela. A próxima produção da Rede Globo, Da Cor do Pecado, finalmente ousará em seu roteiro, trazendo uma protagonista negra (a bela atriz Tais Araújo, que fez grande sucesso em Xica da Silva, novela exibida na extinta TV Manchete). Outro fenômeno televisivo se chama A Turma do Gueto, série idealizada pelo cantor e apresentador Netinho que vai ao ar pela TV Record.
O negro também tem sido considerado como público consumidor e lançador de modas e estilos de ser e se vestir (vide os grupos de pagode e de rap e a existência de revistas como Raça). A preferência crescente pela beleza do homem negro se notou na inclusão, ano passado, do cantor romântico Alexandre Pires entre as 50 latinos mais bonitos do mundo segundo a revista People latina, publicada nos Estados Unidos.
Estes são alguns exemplos de que negros e brancos estão saindo do discurso e partindo para a prática - que pode ser uma tentativa de por fim à intolerância racial. Mas o melhor exemplo ainda são as palavras de quem sente na pele essa realidade.
AULA DE HISTÓRIA E DE SAMBA
Aos 36 anos, a cavaquinista, cantora e professora de história Ilséi Miriam batalha pela memória. É seu o projeto chamado Cantando a História do Brasil, show no qual canta sambas consagrados, com intervalos para contar o período político e social de cada composição. “É uma forma de manter a memória sempre atualizada. A história do Brasil é muito recente e ela pesa sobre todos nós, principalmente sobre o negro. Também canto o Brasil para falar da negritude”, declara.
Nesse projeto, Ilséi veste-se com as cores da bandeira nacional. “Tenho orgulho de ser negra e de ser brasileira”. Aprendeu cavaquinho aos 19 anos, com um professor conhecido por Dino, e depois com Nenê do Cavaco, com quem estudou durante cinco anos.
A força de vontade é a maior aliada de Ilséi. Mesmo dividida entre magistério e a carreira musical, a sambista lançou o primeiro CD independente Samba de Baton, que traz composições próprias e de parceiros da cidade.
Seu jeito de encarar o trabalho não agrada a todo mundo. “Não faço samba pelo samba. Às vezes, as pessoas querem negar o que faço, porque trato o samba como um movimento social importante, que aglutina as pessoas e dá orgulho ao negro”, conta. “Samba não é só diversão”.
Ilséi já abriu shows para nomes da velha guarda, como Tia Surica (da Velha Guarda da Portela), Jurandir da Mangueira e Serginho Procópio em shows no Tonico’s Boteco — lugar onde a cantora tem presença garantida.
O Dia da Consciência Negra, para Ilséi, é importante para se discutir o preconceito racial ainda existente no Brasil. “Assisto a novelas e vejo que os negros fazem papéis insignificantes. O Dia da Consciência Negra tem de ser feriado nacional para todo mundo refletir sobre o assunto”.