Texto/Fotos: Timóteo Camargo
Apesar de concentrar um dos maiores parques tecnológicos do país, a cidade de Campinas sofre, na mesma proporção, a síndrome da exclusão digital. Observando que a cidade mantinha no mesmo nível um grande avanço provocado pelas empresas de tecnologia de ponta e uma população com acesso limitado ao mercado de trabalho por não possuir conhecimentos básicos de informática, um grupo de voluntários decidiu, em 1999, criar um núcleo local do CDI – Comitê para a Democratização da Informática. Esta organização não governamental (ONG), que luta contra a exclusão digital na região, mantém hoje 25 Escolas de Informática para Cidadania (EICs) estabelecidas, onde estudam mais de 1.200 alunos, entre crianças, jovens e adultos carentes. Outras 13 estão em fase de formação e têm o início de suas atividades previsto ainda para esse ano, totalizando 38 escolas. Para Andréia Marques, fundadora e coordenadora da ONG de Campinas, o sucesso desse trabalho não está nos números. Segundo ela, seria possível, ainda esse ano, estender o trabalho à mais de 100 entidades. “Mas não queremos apenas crescer em quantidade”, afirma, explicando que “o mais importante é o que é investido na qualidade do trabalho”. Além de muita “dedicação e paixão”, a economista e bancária de 35 anos aponta a filosofia pedagógica como coluna vertebral de todo o processo de amadurecimento da organização: “Tudo que ensinamos está ligado a realidade do aluno, em cada comunidade. Assim ele assimila melhor e pode aplicar o que aprende com facilidade.”
Filosofia e participação
As EIC são implantadas através de parcerias com organizações, a maioria privadas, que desenvolvem um trabalho assistencial em comunidades carentes e que aceitem a filosofia pedagógica do CDI. Para a irmã carmelita Maria Ivonete da Rocha, coordenadora geral do Centro Assistencial Vedruna, no bairro São Marcos, a proposta do CDI veio de encontro às necessidades da instituição: “O nosso objetivo é a proteção e a valorização da vida. E isso não se faz só aqui dentro [no Vedruna]. Por isso o CDI é tão importante. Ele estende o exercício da cidadania ao dia-a-dia dos alunos.” Luiz Carlos Basseto, coordenador de projetos da instituição, ressalta o interesse que o trabalho do Comitê despertou nos alunos: “Quando a gente falava em cidadania a maioria dos alunos arregalava o olho, fazia cara feia. Hoje, os que estudam na EIC, entenderam que ser cidadão é uma coisa bem mais perto, possível e mais interessante do que parece.”
O CDI arrecada, junto à iniciativa privada, o material necessário para o funcionamento das escolas, como microcomputadores, periféricos, verbas para a compra dos equipamentos, registro e legalização de programas e, em alguns casos, espaço físico. O passo seguinte para a implantação da EIC, esse o mais importante, é o treinamento de funcionários e voluntários da entidade interessada, que já tenham conhecimento de informática, em um curso de capacitação de educadores, com duração de 2 meses. Nele o futuro professor aprende a ensinar cidadania baseado no construtivismo – método pedagógico orientado para a prática e a criatividade, que busca no conhecimento cotidiano do aluno, o fundamento para o ensino.
Uma vez estabelecida a Escola de Informática para a Cidadania, os pedagogos e assistentes sociais do CDI fazem um acompanhamento através de visitas freqüentes às entidades e oficinas com educadores. Nas visitas são discutidas as dificuldades e carências de cada instituição. As oficinas, realizadas em regiões estratégicas da cidade com as EIC próximas, são módulos práticos, ministrados em um encontro, nos campos da cidadania, metodologia e informática, voltados para questões pertinentes a cada região. Os educadores escolhem o local, horário, dentro de um programa oferecido pela coordenadoria pedagógica do CDI, e os temas, como a violência urbana, exclusão digital, eleições e Estatuto da Criança. Além dos encontros o CDI oferece auxílio no desenvolvimento de metodologias e currículos específicos para diferentes grupos sociais
Na EIC, os alunos aprendem noções gerais de informática e os conceitos de cidadania através de projetos práticos que desenvolvem na comunidade. Daí o nome ‘informática para cidadania’. Na Escola Evangelho Esperança em Hortolândia – cidade mais pobre da região metropolitana de Campinas – por exemplo, editam um jornal comunitário mensal, ‘Jovens em Ação’. O periódico trata, entre outros assuntos, das necessidades dos bairros próximos, onde é distribuído. Alguns exemplares da última edição foram enviados ao prefeito e a vereadores da cidade.
Maristela Nespolo da Costa: "Eu descobri dentro de mim
uma capacidade que até hoje eu estou desenvolvendo."
Responsabilidade e preparo
Maristela Nespolo da Costa, estudante de 17 anos, fez um dos primeiros cursos oferecidos pelo CDI Campinas em agosto de 2000, no Centro Assistencial Vedruna. “Eu descobri dentro de mim uma capacidade que até hoje eu estou desenvolvendo. Ganhei responsabilidade, aprimorei meus conhecimentos, ajudei a comunidade e ao mesmo tempo comecei a me preparar para o mercado de trabalho” – conta.
Há oito anos Maristela mora no bairro São Marcos – conhecido como um dos mais violentos da cidade – com os pais e dois irmão. A mãe é dona de casa e o pai trabalha como carregador no CEASA - Central de Abastecimento. Quando participava de um projeto no Centro Vedruna, foi convidada, junto com outros adolescentes da entidade, para participar do curso introdutório de três meses de informática para a cidadania do CDI. Maristela lembra que não tinha computador em casa quando fez o curso: “Era super complicado porque entre uma aula e outra eu acabava esquecendo muita coisa. Toda semana [a professora] Helena tinha que voltar e ensinar tudo de novo.”
Depois do módulo básico, Maristela fez o curso de capacitação e hoje é educadora na instituição, onde foi contratada há três meses. Junto com a família financiou a compra um computador no começo desse ano. Faz o terceiro ano do ensino médio e pretende se formar no curso técnico de informática. “Depois disso ainda não sei o que vou fazer, mas tenho certeza de que quero continuar ensinando e ajudando a comunidade”
Sintonia com o Mercado
A informática ministrada nas EIC é instrumentalizante, ou seja, procura dar ao aluno ferramentas criativas para que ele continue por conta própria seu desenvolvimento técnico. “Os [alunos] que querem seguir profissionalmente com a computação estão se adequando às necessidades do mercado.” – disse Andréia. “Muita empresa deixa de contratar não só por falta de conhecimento técnico, mas por falta valores, conduta ética e responsabilidade,” aspectos enfatizados no conteúdo programático do curso de Informática para a Cidadania. “Sem isso seríamos apenas mais uma escola de informática. Poderíamos estar até formando hackers ou outro criminoso digital.”
Diego Maiel (de boné), aluno e monitor da 1ª EIC do CDI
Segunda geração de educadores
Na primeira EIC implantada, a Escola Evangelho Esperança, em Hortolândia, o adolescente Diego Maiel de 15 anos se prepara para fazer parte de uma nova geração de educadores do CDI Campinas: a daqueles que passaram pelas EICs. Ele está terminando o curso de 2 anos da Escola de Informática para Cidadania, e fazendo o curso de capacitação, às sextas-feiras, na Fundação Educar. Paralelamente, trabalha como assistente do seu professor nas turmas de iniciantes da EIC.
Diego mora no Santo Emílio, um bairro operário próximo à Evangelho Esperança, e fala satisfeito do trabalho que faz na EIC: “É muito legal ajudar toda essa criançada que podia estar à toa na rua, sem aprender nada, a se preparar para a vida, assim como eu aprendi aqui”.
Cursando o 1o ano do ensino médio, e já fazendo planos para a faculdade de Turismo, que pretende pagar trabalhando com computação, ele não esconde a vontade de continuar na EIC: “Seria muito legal ficar no CDI porque foi aqui que eu aprendi tudo que eu sei hoje.”
Diego fez o curso de torneiro mecânico na Escola Evangelho Esperança em 1999. A entidade funciona em um antigo galpão de oficina que foi transformado em escola de mecânica para crianças carentes, em 1989. Aos poucos a instituição ampliou a atuação na comunidade. E Desde 1995 oferecia aulas de computação. Diego entrou primeira turma do CDI, implantado em 2000 na Evangelho Esperança. Além de ceder o método didático e preparar professores, o CDI doou computadores novos, dobrando o número total. Hoje a escola atende hoje 160 adolescentes entre 11 e 17 anos.
Para Helena Whyte, coordenadora pedagógica do CDI Campinas, esse exemplo demonstra a tendência multiplicativa da cidadania quando aliada à educação: “Queremos que o aluno que passa pelo curso seja formado e ele passe a dar aula. Daí, o educador que estava naquela comunidade, pode semear em outras comunidades. Os educadores vindos da própria comunidade têm mais legitimidade para falar dos problemas da comunidade e conhece melhor sua linguagem.”
Para Helena o ensino da cidadania desperta o interesse no aluno, consciente de seu papel na sociedade, em levar adiante aquilo que aprendeu. “A multiplicação é fator de sucesso para o CDI” – garante.
Outro exemplo da continuidade do trabalho do CDI Campinas é Luis Henrique (20), professor de Diego na Escola Evangelho Esperança desde 2001. Luiz conheceu o CDI há um ano na Fundação Educar Depaschoal, onde fazia um curso de protagonismo em cidadania. Na época ele desenvolvia um projeto social dando aulas de informática como voluntário em uma escola de seu bairro. “Eu queria trabalhar como educador e desenvolver algum projeto de cidadania quando fiquei sabendo que o CDI precisava de educadores.”
Hoje, Luiz é um dos professores mais experientes do CDI Campinas, e está se preparando para o vestibular de Pegagogia. Apesar das incertezas tem planos dar continuidade ao trabalho assistencial, só que como pedagogo da ONG.
História
A história do CDI Campinas começou dois anos antes de sua fundação jurídica. Em 1998, Andréia Marques, trabalhava como voluntária no Lar Criança Feliz, e conheceu Léo Burd, coordenador do CDI em São Paulo. Frustrada por não conseguir implantar a informática na entidade, através de Burd conheceu o trabalho do Comitê na capital paulista, onde passou a trabalhar como voluntária aos fins de semana durante dois anos. “Percebi que Campinas precisava de seu próprio CDI” – conta. “a cidade tem um grande parque tecnológico, mas sofre também, na mesma proporção, com a exclusão digital.”
Em 2000, Andréia e um grupo de amigos, entre eles, Burd, puseram no papel o projeto de formação do CDI Campinas e apresentaram a empresas, voluntários em potencial, fornecedores de equipamentos de informática e entidades assistenciais em reunião no auditório do CPqD (Centro de Pesquisas e Desenvolvimento). Participaram cerca de 50 pessoas, que demonstraram apoio à idéia. Logo vieram as primeiras doações.
Em um mês, o recém-criado CDI Campinas ganharia sua sede: uma sala cedida pela Fundação Educar, pertencente à empresa do ramo automotivo Depaschoal, seu primeiro parceiro e o principal até hoje. “Os dois primeiros micros que ganhamos eu tive que guardar em casa até termos um lugar.” – lembra.
Algumas parcerias foram importantes na fase embrionária do Comitê. Além da Fundação Educar, o BNDES, que já colaborava com o CDI Rio de Janeiro, e a Câmara de Comércio Americana, doaram verbas para a compra de micros novos. O bar e restaurante cultural Tonico’s Boteco cedeu espaço e ajudou a promover eventos de divulgação, que atraíram novas parcerias.
Parcerias
Hoje o CDI Campinas conta com 12 parcerias. Além da doação de equipamentos, alguns parceiros, como a Federação das Entidades Assistenciais de Campinas (FEAC), Secretaria de Ação Social da Prefeitura de Campinas e Fundação Educar, custeiam a contratação de profissionais indispensáveis ao trabalho, como pedagogos e assistentes sociais. “Ao contrário do que muita gente pensa, nossa maior carência hoje é de recursos humanos. Campinas tem um grande parque de microcomputadores que estão sempre em renovação.” Andréia ainda conta que no ano de 2000, todo o trabalho do CDI foi feito por voluntários. “...não tínhamos ninguém contratado e nem condições para contratar.”
Apesar de atuar em vários Estados do País, cada unidade regional do Comitê é responsável por levantar seus recursos. Em nível nacional (e mundial), o Comitê conta com o apoio da americana Microsoft, que registrou os programas utilizados, e que oferece um certificado a quem conclui o curso nas EIC, com assinatura do presidente mundial da empresa, Bill Gates.