O DESCONHECIDO MUDA SEMPRE DE MÁSCARA
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Daniel Santos é jornalista carioca, 55 anos. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo".
Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001. Atualmente publica crônicas semanais no site do Comunique-se.
Contato: daniel_santos2002@hotmail.com
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Noutro dia, viram Glenda na porta do cinema. Usava o pulôver jogado sobre os ombros e comia pipocas com a displicência de uma dessas que têm as tardes livres, se bem examinasse a atriz no cartaz do cinema com certa aflição, com uma agonia que não é próprio das fãs expressar.
Havia entre as duas uma distância intransponível. Um pouco de inveja, também. Porque Glenda, além de não ser mais reconhecida pelos admiradores, tinha de aceitar que eles elegessem a outra como a mais bela, e ela mesma consultava naquela linda imagem as novas modas a seguir.
No entanto, não fora sempre assim. De início, nem se sabia tão bonita quanto diziam. Depois, aquele cartãozinho de um descobridor de talentos e, logo, avançava pelas passarelas, diante dos flashes dos fotógrafos, com a determinação de quem não deixaria escapar sua chance.
E não deixou mesmo. Mas, a partir de então, experimentou uma espécie de metamorfose que, de pronto, ela não percebeu e, depois, não conseguiu deter. E seu primeiro sobressalto ocorreu dentro de casa, quando seus pais ignoraram a própria filha e elogiavam apenas a outra, a da tevê.
Porque a da tevê, graças aos retoques eletrônicos, parecia ainda mais doce e loura, com uma tonalidade turquesa nos olhos jamais vista. A da tevê correspondia à imagem que os pais e o público faziam de Glenda: a de uma sílfide com serenidade e altivez intocáveis. Como uma esfinge.
Mas não foi fácil chegar a tamanha perfeição. A modelo, que de nada desconfiava, deixou-se fotografar meses seguidos sem interrupção até o mais completo definhamento. Após conseguirem dela todas os detalhes e nuances necessários à criação de novas imagens, dispensaram-na.
Tornou-se, então, secundária. Mais valiam as ruivas, negras e morenas que dela resultaram, graças aos prodígios do computador. Por isso, tinha aquele olhar aflito na porta do cinema: uma das suas variantes lhe mostrava no cartaz do filme como se vestir, maquiar-se, pentear-se ...
E ela tinha de correr atrás, se bem a ignorassem, como quando uma outra (um tipo exótico, cor de índia e olhos verdes!) lançou sua biografia em faustosa solenidade. Mas Glenda não foi convidada. Do lado de fora, espiava a outra recebendo cumprimentos e autografando em seu nome!
Ela busca copiar quem, antes, a copiou. Em vão. Quando se cansa, vai até a varanda e tenta adivinhar entre as estrelas, nas ondas de satélites que divulgam suas imagens pelo cosmo, se ela própria ou alguma das outras é Glenda, de fato. Mas, seja qual for, já não tem mais noção de si.
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