TEVÊ: O CONTÁGIO AZUL DO FOGO-FÁTUO
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Daniel Santos é jornalista carioca, 55 anos. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo".
Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001. Atualmente publica crônicas semanais no site do Comunique-se.
Contato: daniel_santos2002@hotmail.com
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Estranho fato disseminou-se entre os moradores de certo conjunto habitacional: após décadas de harmoniosa convivência, experimentaram tal indiferença que se imobilizaram, afinal, numa prostração irreversível.
Corria o ano de 1950, ou 51, se a memória não falha, quando o caminhão de entregas de uma famosa loja de departamentos estacionou, certa manhã, à portaria do edifício com encomenda do apartamento 303.
Por toda a escadaria interna do prédio – uma enorme espiral semelhante às vértebras retorcidas de extinto sauro -, moradores apinhavam-se, ruidosos e bisbilhoteiros, a ver do que se tratava.
O que fosse aquilo, vinha embalado numa grande caixa de papelão logo entregue aos compradores – pai e filha muito sisudos que, mal assinaram o recibo de entrega, bateram a porta na cara da gentinha curiosa.
Também os carregadores nada disseram, mas naquele mesmo dia a síndica desvendou o mistério: ao inspecionar a luz azul que saía pela janela do tal apartamento, descobriu tratar-se de uma tevê. Rara, mas já à venda.
Com as semanas, descobriu mais; por exemplo, o aparelho devia entreter mais quer tudo, porque pai e filha, antes ocupados com a organização da casa e leituras noturnas, imobilizavam-se diante da tela.
Imobilizavam-se a ponto de nada mais fazerem e negligenciarem a própria higiene pessoal. Pior: azularam-se por excesso de exposição àquela luz inédita e moviam-se vagarosos como criaturas em estado de hipnose.
Por mais que considerassem estranha tal mutação, os demais moradores sentiam, igualmente, certo fascínio e, talvez por isso, não reagiram ao progressivo avanço da luminosidade que, logo, tomava tudo.
Assim, em questão de meses, a tevê vigorava na maioria dos apartamentos onde, além do clarão cerúleo, havia apenas silêncio, uma incômoda impossibilidade de se movimentar, de se manter de pé.
Era já o conformismo que consagrava a derrota – uma derrota geral, capaz de imobilizar aqueles que, antes, se interessavam tanto uns pelos outros mas, a partir daí, ardiam indiferentes ao fogo-fátuo da consumição.
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