ENTREVISTA
Entrevista com Philippe Descola
Animais, plantas, natureza: os direitos do meio ambiente.
Philippe Descola é um antropólogo francês. Estudou filosofia na École Normale Supérieure e etnologia na École Pratique des Hautes Études, onde defendeu sua tese, sob a orientação de Claude Lévi-Strauss.
Há vários anos desenvolve uma reflexão sobre as relações entre natureza e cultura. Publicou La nature doméstique (1986), As Lanças do Crepúsculo (1993)[1] e Par-delà nature et culture (2005).
A antropologia de Lévi-Strauss era uma grande teoria sobre o ser humano. A antropologia de hoje, ao contrário, deve ir além do humano. O ser humano sozinho não lhe basta mais. Porque natureza e cultura são uma só coisa. Sociedade e meio ambiente, uma só casa. As neurociências, a etologia, a genética, a ecologia falam claramente. Nós, bípedes, com o dom da palavra, não somos o umbigo do mundo, mas sim parte da vida, quer gostemos ou não.
Philippe Descola sorri maliciosamente. Ele assumiu o lugar de Lévi-Strauss na cátedra de antropologia mais prestigiada do planeta. A do Collège de France. Tudo aqui ainda fala do mestre que revolucionou as ciências do ser humano. Livros, estantes, objetos exóticos descritos precisamente em Tristes Trópicos. “Obviamente, eu não sou o herdeiro de Claude Lévi-Strauss, mas só o seu sucessor”, explica, com bom humor.
A entrevista:
Um homem que tinha uma imensa e preciosa erudição, de savant de outros tempos.
E que não é mais de hoje. A sua análise dos mitos é um virtuosismo acrobático. Obras como O Pensamento Selvagem e O cru e o cozido são o produto de um talento pessoal muito próximo ao de um artista. Ele era capaz de se lembrar de um fragmento de um conto japonês lido 20 anos antes e de conectá-lo aos mitos dos nativos da América ou da Grécia que ele estudava naquele momento. Ou a um acorde da tetralogia de Wagner.
Lévi-Strauss fez da antropologia um dos grandes saberes do século XX. Ele demonstrou que, por trás das diferenças entre as culturas, há analogias escondidas que permitem remeter a miríade de diversidades a poucas leis gerais, comuns a todos os seres humanos.
Ele tratava as diferenças entre as culturas como variações de um mesmo tema musical. E a sua grande lição é que a tarefa da antropologia é ir além das diferenças superficiais, além da etnografia, para alcançar aquilo que nos torna todos igualmente humanos.
Ou até todos seres vivos. Humanos e não humanos. Nisso, Lévi-Strauss antecipou aquele sentimento de unidade entre sociedade e natureza, que envolve milhões de cidadãos globais. Não é por acaso que o senhor preferiu rebatizar a sua cátedra como “Antropologia e natureza”, tornando-se assim continuador do Lévi-Strauss mais atual e profético.
O fato é que os homens não estão sozinhos no palco da humanidade. E o resto, aquilo que normalmente se chama de natureza ou meio ambiente, não é propriedade nossa, nem uma projeção nossa, muito menos um simples recurso à disposição do nosso desenvolvimento. As outras criaturas, animais, plantas, minerais, também são coinquilinos do mundo. Não são coisas ou formas de vida, mas sim verdadeiros agentes sociais, que têm os mesmos direitos que os seres humanos. E muitas vezes características em comum, que não são meramente biológicas, mas até culturais. É por isso que hoje a antropologia não pode mais se limitar ao ser humano, mas deve estender o seu olhar a todos os seres com os quais interagimos e convivemos.
E, além disso, a nossa ideia de natureza é relativamente recente.
Ela começa a se desenvolver só no século XVII, no início da modernidade, quando o mundo foi dividido em duas partes. De um lado, o universo das convenções e das regras, ou seja, a cultura. De outro, o mundo dos fenômenos e das leis da natureza.
De um lado, a pessoa humana, de outro, as não pessoas, isto é, todo o resto. Mas, desse modo, o ser vivo é cortado em dois e separados de uma parte de si mesmo. Essa foi a concepção que legitimou a dominação e a exploração do ser humano, assim como da natureza?
Certamente. Além de tudo isso, essa oposição entre cultura e natureza, entre ser humano e as outras criaturas, não é nem universal. Muitos povos não a compartilham. Basta pensar no primeiro capítulo da nova Constituição do Equador, que protege precisamente os direitos da natureza, em que a natureza, diferentemente de nós, aparece como uma espécie de pessoa viva. Justamente como a Pachamama, a mãe terra das religiões mesoamericanas.
Não por acaso, o presidente boliviano, Evo Morales, e uma cúpula latino-americana reconheceram que os ecossistemas enquanto tais têm direitos. Um modo diferente de sistematizar os problemas, que, também à luz de dramas como o do Chifre da África, deveria começar a influenciar a agenda política planetária, especialmente em matéria de bens comuns.
Em muitos países do mundo, é inconcebível que os recursos vitais sejam privatizados. A própria ideia de que existe um mercado dos bens de subsistência é um caso excepcional na história da humanidade. Aristóteles, na Crematística, a ciência da riqueza, já punha em questão a legitimidade da compra e venda dos bens indispensáveis para a sobrevivência. O que é interessante é que hoje cada vez mais pessoas tomam consciência do fato de que alguns recursos são intocáveis, porque não pertencem só aos seres humanos, mas a todos os seres vivos. E até ao conjunto dos ecossistemas inteiros.
Isto é, ao planeta na sua totalidade indivisível, na sua integridade vital que também nos compreende, enquanto nascidos da terra.
Nesse sentido, a antropologia tem uma tarefa importante, que é a de apresentar outros modelos de humanidade. Mostrar de que modo as outras civilizações enfrentaram e resolveram problemas análogos aos nossos.
Quais são as três grandes urgências do nosso tempo?
Ecologia, tecnologia e coexistência com as outras civilizações. Três questões que podem ser resumidas em uma, isto é, como fazer com que todos os ocupantes do planeta coabitem, sem muitos danos, renúncias e conflitos. E se não se chegar a isso, haverá uma catástrofe. Ambiental, demográfica e informática.
Por que informática?
Porque deveremos ser inundados por uma avalanche de informações cada vez mais incontroláveis, incongruentes, perigosas.
Também seremos inundados por montanhas de lixo digital, enfim. Mas a política lhe parece estar à altura da tarefa?
Infelizmente não. Hoje, eu vejo uma grande pusilanimidade nos políticos e nos vários G7 ou G20. Não possuem coragem e imaginação. Estão sempre atrasados com relação à realidade. Também porque subestimam o papel da cultura nas elaboração das políticas sociais e ambientais. E, frequentemente, não se vai muito além de alguns pequenos pensamentos politicamente corretos sobre a necessidade do diálogo entre as culturas. Mas não acredito nisso, verdadeiramente.
As pessoas comuns parecem acreditar nisso cada vez mais. Os movimentos que agitam o mundo neste período, que parecem fatos separados, não são talvez os sintomas de um novo sentido comum?
Sim, cada vez mais pessoas estão conscientes de que o modelo de desenvolvimento que tem governado o mundo nestes últimos dois séculos está se desfazendo. Eu diria que esses movimentos são exercícios no futuro, os primeiros passos para uma nova democracia global.
Ecodebate, 12/08/2011 publicado pela IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação. IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.
A reportagem é de Marino Niola, publicada no jornal La Repubblica, 10-08-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
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